domingo, maio 08, 2016

ARTIGO DE CACÁ DIEGUES


De Cunha a Suzana

Se continuar assim, digo eu, só os místicos ficarão no Brasil. E místicos não são aqueles que têm religião, mas os que acreditam naquilo que ainda não conhecem
Brasil chora (Foto: Arquivo Google)
Cacá Diegues, O Globo
No mesmo dia em que o Supremo defenestrava Eduardo Cunha da vida parlamentar por excesso de maldades e malfeitos, Suzana Herculano-Houzel, a nossa mais importante neurocientista, anunciava estar encerrando suas atividades no país, e aceitando convite para se transferir para a Universidade de Vanderbilt, em Nashville, nos Estados Unidos. Um partia por excesso de poder; a outra por poder nenhum.
Suzana, pesquisadora no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista na arquitetura do cérebro humano, vai embora como protesto contra o que chama de “engessamento” de sua atividade no país. Um engessamento que vai desde a questão salarial, até os recursos disponíveis para seu trabalho, a permanente falta de financiamento para a ciência.
Para que o Estado lhe dê meios para a compra do indispensável às suas pesquisas, o cientista brasileiro é obrigado a passar por uma via-crúcis, muitas vezes inútil, de requerimentos, autorizações, impostos, burocracia e uma miséria absoluta que o obriga a esperar dois, três anos para ter algum retorno. Quando o tem. O ano passado, o laboratório de Suzana, reduzido de 15 para sete pessoas, só conseguiu fazer alguma coisa graças ao crowdfunding que ela organizou através da internet. Segundo Suzana, “não dá mais para fazer ciência de ponta no Brasil”.
É o mesmo que pensam outros cientistas, como o matemático Artur Ávila, que outro dia carregou a tocha olímpica em Brasília. Artur, de 36 anos, é o único latino-americano e lusófono a ganhar a Medalha Fields, o Prêmio Nobel de Matemática. Para continuar seu trabalho, Artur teve que deixar o Brasil e se naturalizar francês. Ou como Mayana Zatz, diretora do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-Tronco, da Universidade de São Paulo (USP), que, embora convidada, se recusou a voltar para a Califórnia, onde fez seu doutorado nos anos 1980. Segundo Mayana, o Governo tinha a obrigação de oferecer incentivos fiscais para investimento privado na produção científica. Se continuar assim, diz ela, “o Brasil em breve será considerado um país de segunda categoria em matéria de ciência”.
Se continuar assim, digo eu, só os místicos ficarão no Brasil. E místicos não são aqueles que têm religião, mas os que acreditam naquilo que ainda não conhecem.
Não tenho ilusões sobre a mudança do país com o novo governo, não vejo no horizonte o desejo de grandes transformações, a ânsia por uma nova luz. Pelo que ouço, o projeto renovador é apenas o de varrer o salão e não o de construir a casa de novo, a partir de nova arquitetura. Não há novidades à vista. Pelo contrário, no enxugamento de custos do Estado, o Ministério da Cultura quase foi parar nas gavetas do Ministério da Educação. Um retrocesso.
Como a singularidade da ciência, educação e cultura nada têm a ver uma com a outra. A educação prepara o cidadão para a vida civil, dá-lhe conhecimento e capacidade de escolher, incentiva nele uma liberdade de autogestão diante das circunstâncias dadas. A educação ilumina nossa cabeça para o real diante de nós. Já a cultura existe para desarrumar a cabeça dos homens, descobrir-lhes novos sentidos para a vida, a colaborar com a permanente reinvenção da sociedade e da civilização. Educação e cultura são irmãs de uma mesma origem, vivendo em permanente dependência uma da outra, mas também em disputa pela hegemonia entre elas. E a ciência herda o que as duas têm de melhor, organizando a vida e inventando-a. É assim que elas fazem sentido.
Aí vem a notícia de que o bispo Marcos Pereira, notório conservador e criacionista, em guerra permanente contra a teoria da evolução, será o próximo ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação. É meio como contratar o Dunga para dirigir uma ópera no Municipal; ou convidar o Fernandinho Beira-Mar para ser secretário de Segurança Pública. Aí a gente entende perfeitamente porque Suzana Herculano-Houzel está indo embora, porque Artur Ávila se naturalizou francês.
Como todo mundo, tenho acompanhado a crise brasileira na televisão, como se assiste a uma novela da qual podemos perder alguns capítulos, sem perder o rumo da trama. Outro dia, acessei a GloboNews no final de uma entrevista com um professor de Ciência Política que afirmava estar o Judiciário a se tornar o Poder Moderador do regime. Aquilo me fez pensar em nossa história.
No século XIX, enquanto liberais e conservadores se estraçalhavam, o imperador era o nosso Poder Moderador. Com o fim do Império, os grandes proprietários de terra assumiram esse papel, que durou toda a República Velha. Depois da Segunda Guerra Mundial, o Poder Moderador passou às mãos dos militares, que usaram e abusaram dele, em 54, 61, 64 e 68, quando se tornaram o poder único. Agora, nossa politica está se judicializando. Será que o Supremo Tribunal Federal tem sensibilidade e decisão para salvar a educação, a cultura e a ciência do país? Quem as pode socorrer?
Cacá Diegues é cineasta

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe sua opinião