Americana emitiu a opinião mais azeda, belicosa, obscurantista e preconceituosa até agora sobre o Mundial e seu futebol
A escritora Ann Couter rebaixou o futebol à um esporte menor (Divulgação) |
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Desde o início da Copa, a seleção da Holanda vem conquistando os brasileiros pelo convívio alegre com a terra e o povo anfitrião. Estrelismo zero dentro e fora do campo. Sua empolgada torcida tinge de laranja até o ar por onde passa, arrebanhando quem estiver no caminho.
O Oranjecamping, com suas 500 barracas armadas no terreno de um clube na região da Represa de Guarapiranga, em São Paulo, tornou-se uma atração à parte, pela descontraída organização. Ali tudo é cor de laranja, dos óculos de tomar sol à caravana de motos, vans e carros que partiu de Nova York para se integrar à torcida. É a décima edição dessa filial da Holanda no exterior em tempos de Copa — motorista de ônibus, juiz aposentado ou cônsul honorário em Montreal, tudo junto e misturado. Tem até um Oranjebus que veio trazido de navio.
Hoje, a uma hora da tarde, o time do atacante voador Van Persie enfrenta o México no estádio do Castelão, em Fortaleza, e será a vez de os cearenses descobrirem o aprazimento da babel laranja. Na semana anterior fora a vez dos gaúchos. Inesquecível.
Era quarta-feira, 18 de junho, e a já célebre banda Dutch Factor 12, composta de músicos-torcedores que há mais de uma década se deslocam atrás de sua seleção, rumava para o estádio Beira-Rio. Não tinham ingressos para o jogo contra a Austrália (a Holanda venceu por 3 a 2) nem poderiam entrar com seus instrumentos, mas isso era secundário.
Ao chegarem ao Beira-Rio, depararam-se com a Banda Militar de Porto Alegre, que executava seus números protegida por uma grade. O inesperado encontro em meio à multidão gerou um pedido dos holandeses: queriam afinar os instrumentos de sopro tocando com os brasileiros alguma música do repertório em curso. “Aquarela do Brasil”, respondeu um dos PMs. Alguém cantarolou o início do samba de Ary Barroso e todos entenderam. As duas bandas passaram a tocar na mesma língua franca.
Alegria geral. A Dutch Factor 12 afinou, empolgada, sem precisar decifrar o “mulato inzoneiro”, “merencória” ou a “morena sestrosa” da letra. Logo a grade de proteção se abriu para os músicos de laranja e PMs e holandeses passaram a tocar lado a lado.
Um flagrante simples, espontâneo e universal do que esta Copa tem de melhor — além dos jogos simplesmente espetaculares, é claro.
Vale contrapor o momento “Aquarela” à opinião mais azeda, belicosa, obscurantista e preconceituosa emitida até agora sobre o Mundial e seu futebol. Partiu da colunista, comentarista política e escritora americana Ann Coulter.
Coulter é uma celebridade no país que inventou a celebridade. Formada em Direito Constitucional, ela é considerada a língua mais ferina da TV. Cultiva posições de extrema-direita ultrajantes com o mesmo zelo que cuida da silhueta impactante e da longa cabeleira loura. Domina qualquer debate através de uma infinita capacidade de gerar indignação e enfurecer liberais. Exasperar adversários através de opiniões deliberadamente odiosas faz parte do seu marketing. Ser admirada como destemida defensora dos valores ultraconservadores, também. A ousadia verbal é sua ferramenta.
“Não devemos esquecer que Bill Clinton foi um ótimo estuprador” é uma das frases soltas que dispara. A um jornalista do “New York Observer” que a entrevistava, Coulter certa vez perguntou se ele tinha ligado o gravador. Diante da negativa, aconselhou: “Então ligue-o, pois tenho algo a dizer... Minha única bronca do Timothy McVeigh (autor de um atentado em Oklahoma City que causou 168 mortes e 850 feridos 20 anos atrás) é que ele não colocou a bomba no ‘New York Times’.”
Em artigo publicado na semana passada Ann destilou a bílis contra o futebol. Mais especificamente contra o inesperado entusiasmo dos americanos pela Copa e a crescente popularidade do esporte nos Estados Unidos.
“Qualquer aumento de interesse pelo futebol só pode ser sinal da decadência moral do nosso país”, escreveu como ponto central da argumentação. E alinhavou uma série de constatações que confirmariam sua tese. Alguns desses pontos, resumidos:
O desempenho individual não é fator determinante no futebol, ao contrário do que ocorre em esportes de verdade.
No futebol a culpa é dividida... Não há heróis, nem perdedores, não há responsabilidade a ser cobrada.
A perspectiva de humilhação pessoal ou lesão grave são parte dos esportes de verdade (portanto, não do futebol).
Ao término de uma partida de futebol americano, ambulâncias levam os feridos. Jogadores ganham um suco.
No futebol você não pode usar as mãos. Ora, o que nos diferencia de animais menos desenvolvidos, além da alma, é o fato de termos polegar e indicador capazes de segurar coisas.
O número de artigos do “New York Times” afirmando que o futebol está pegando nos Estados Unidos só é inferior ao número de artigos atestando que basquete feminino é fascinante.
Futebol é como o sistema métrico, que os liberais adoram porque vem da Europa.
A mudança demográfica no país, isto é, a enxurrada de imigrantes, seria a causa desse frisson todo. “Podem confiar no que digo”, conclui o artigo, “nenhum americano cujo bisavô nasceu nos Estados Unidos está acompanhando a Copa. Só nos resta esperar que, depois de aprender o inglês, esses novos americanos também venham a abandonar, com o tempo, essa mania de futebol”.
Ann Coulter está com 53 anos. Ainda em tempo de aprender algo. Nem que seja entoar “Aquarela do Brasil” com um torcedor holandês e um PM brasileiro.
Dorrit Harazim é jornalista
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/opiniao/aquarela-do-brasil-13055356#ixzz362k9IowX
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