Ludmila Santos
É comum os juízes serem favoráveis a pedidos de pacientes nos julgamentos sobre medicamentos. Eles se baseiam na Constituição, que estabelece de forma expressa que a saúde é um direito fundamental do ser humano e deve ser prestada de forma rápida. O problema é que, se por um lado a Justiça garante ao cidadão um direito constitucional, por outro o Poder Público arca com o ônus. Isso porque nem sempre tem previsão orçamentária para atender todas as solicitações, que não são poucas.
De acordo com um levantamento apresentado em novembro de 2010 pelo Conselho Nacional de Justiça, mais de 112 mil processos relacionados a demandas no setor de saúde tramitam nos tribunais brasileiros. Entre elas, as solicitações de remédios. Já o estudo Judicialização da Saúde Complementar — em que a Unimed Belo Horizonte analisou as decisões do Superior Tribunal de Justiça e dos tribunais de Justiça de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais entre 2005 e 2009 — aponta que 86% dos acórdãos são favoráveis aos pacientes.
A escassez de recursos e a ineficiência da gestão do SUS acabam gerando outros problemas, não só de ordem técnica, mas também de ordem teórica. Ao seguirem o que determina a Constituição de 1988, que elevou a saúde a um direito social, os juízes, que não possuem conhecimento específico sobre o assunto, interferem na gestão do Poder Público, muitas vezes sem embasamento técnico. É a judicialização da saúde.
Alguns operadores do Direito defendem que o juiz não pode decidir sobre o tema, devido a essa possível interferência em políticas públicas, sem ter dados técnicos. Em alguns casos, nem sempre o processo é o que parece. Um mapeamento dessas ações feito pela Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo em 2007 mostrou que alguns processos eram fruto de ações organizadas. Em entrevista à revista ConJur em 2009, o então procurador-geral Fábio Nusdeo explicou que foi identificada em algumas regiões uma demanda artificial por remédios específicos, criada por representantes de laboratórios.
Para a defensora pública Renata Flores Tibyriçá, que atua na unidade da Fazenda Pública da regional central de São Paulo, o ideal é que o cidadão solicite ao Poder Público a efetivação do seu direito, porém, nem sempre o Estado faz as políticas públicas necessárias para garantir o acesso à saúde. “A busca pelo Judiciário tem de ser a última opção, afinal, saúde é direito de todos, mas dever do Estado. Mas se isso não está sendo observado, a Justiça não pode simplesmente lavar as mãos, mesmo que isso acarrete uma interferência na administração pública. Os poderes são independentes, mas não estão isentos de controle”.
Em alguns estados, um ponto já foi esclarecido: o problema só será solucionado de forma integrada, com iniciativas que estabeleçam uma estrutura no Judiciário para a resolução dos processos de forma célere e que evite o surgimento de novas demandas. Nesse sentido, duas iniciativas se destacam. No Rio de Janeiro, o Tribunal de Justiça, em parceria com a Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil, criou o Núcleo de Atendimento Técnico (NAT) para auxiliar os juízes com informações técnicas e, assim evitar fraudes. Já
Experiência fluminense
A parceria entre o TJ-RJ e a Secretaria de Saúde do Rio, que culminou na criação do NAT, começou em
A equipe é composta por quatro funcionários administrativos, responsáveis pelas rotinas do núcleo, 13 farmacêuticos, quatro nutricionistas e dois enfermeiros, além de uma coordenação formada por três farmacêuticos e um médico. Os processos que chegam ao NAT são cadastrados no banco de dados e distribuídos aos profissionais da equipe, para que eles possam analisar os casos e dar o parecer técnico. Depois, a avaliação é enviada à coordenação, que revisa e, caso considere necessário, propõe alterações no texto. A última etapa é o retorno do parecer para o cartório ou para a secretaria do juiz que o encaminhou.
De acordo com a assessora-chefe do NAT, Marcela de Araujo Calfo, a análise é feita com base nos documentos médicos apresentados no processo. O objetivo principal é esclarecer ao juiz, nos casos de medicamentos, se o pedido está de acordo com a patologia declarada, se as doses mínimas e máximas foram preservadas, se há interação medicamentosa entre os remédios prescritos, se há substitutos disponíveis no SUS para os medicamentos não padronizados que poderiam ser utilizados após avaliação médica, além do encaminhamento aos serviços de saúde responsáveis pelo atendimento daquela demanda.
A assessora-chefe explicou que o objetivo do grupo não é evitar a concessão das liminares, mas adequar o atendimento das demandas às regras do SUS. “A judicialização desses pedidos é um desvio do SUS, porque muitos remédios que são pleiteados já são oferecidos. O que acontece é o desconhecimento dos procedimentos necessários para que eles sejam retirados. Nesses casos, é só indicar a forma administrativa de como proceder. Identificamos que 40% da demanda não precisava existir”.
Os profissionais apenas apontam se o pedido de enquadra nas normas do SUS, cabendo ao juiz decidir quem realmente necessita dos remédios ou de tratamento específico. Nesse sentido, o NAT também funciona como um filtro. “Já nos deparamos com processos em que a doença do paciente não tinha relação com o medicamento pedido. Em um caso, o autor da ação solicitou oxibutimina, um medicamento usado para o tratamento de bexiga neurogênica, para tratar de hepatitice C. Quando a parte foi chamada para se manifestar, disse que já tinha se curado da doença. Porém, a hepatitice C não tem cura”.
Marcela explicou ainda que, ao encaminhar o paciente que recorreu à Justiça ao SUS, nos casos em que a solicitação estiver disponível, o NAT acelera o atendimento da demanda, pois, pela via judicial, o período entre o deferimento da tutela até o fornecimento do medicamento é, em média, um mês. Já o grupo técnico tem de emitir o parecer em até 48 horas, pois muitas ações tratam de pedidos de liminar. “Em casos complexos, que demandam mais tempo, pedimos autorização para extensão de prazo. Cerca de 80% desses pedidos são autorizados”, explicou Marcela. Entre eles, destacam-se ações com muitos pedidos de medicamentos diferentes ou de tratamentos disponíveis apenas no exterior.
Em média, 120 processos chegam ao NAT por mês. No primeiro ano de núcleo, foram dados 920 pareceres e, no ano passado, 1.448. Só neste ano, já foram emitidos 270 pareceres. “O núcleo foi implantado como um projeto piloto, a princípio, nas 9ª e 10ª Varas de Fazenda Pública. Meses depois, o trabalho foi estendido para todas as 13 Varas de Fazenda Pública da capital e para as 20 Câmaras Cíveis do Tribunal. Esse é um dos fatores que explica o aumento na demanda. Se considerarmos que o período em que o Judiciário ainda estava de recesso e os feriados neste ano, os números até agora não representam nem dois meses corridos”.
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