sexta-feira, junho 04, 2010

GULLAR E O HOMOSSEXUALISMO IRREALIZADO DE FERNANDO PESSOA

Fernando Pessoa só encontra paralelo na literatura portuguesa em Camões. É o maior “fingidor” que se tem notícia, o que, talvez, explique os seus heterônimos. Viveu a glória e a angústia dos poetas grandes e amargou o sofrimento pelo que considerava “humilhante”: sua condição de homossexual irrealizado.
Ferreira Gullar, uma de nossas maiores vozes poéticas, aborda esse aspecto da figura humana de Pessoa, no trecho desse texto a seguir :
"...Mas há um outro dado a acrescentar a esse quebra-cabeças: o homossexualismo irrealizado de Fernando Pessoa. Mais uma vez recorremos a suas próprias palavras: "Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher. As minhas faculdades de relação -a inteligência e a vontade, que é a inteligência do impulso- são de homem". Adiante ele diz: "Reconheço sem ilusão a natureza do fenômeno. É uma inversão sexual fruste. Pára no espírito". Mas vejamos o que se segue: "Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou, não tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento não pudesse um dia descer-me ao corpo. Não digo que praticasse então a sexualidade correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me humilhar".
Esse texto deixa claro a drástica reprovação de Pessoa à prática do homossexualismo (que ele considera humilhante), assim como o temor de que, contra a sua vontade, esse impulso lhe descesse ao corpo e o submetesse. "Somos vários desta espécie, pela história abaixo'', afirma, referindo-se em seguida a Shakespeare e Rousseau, para sublimar seu receio "da descida ao corpo dessa inversão do espírito", "como nesses dois desceu". Seria descabido imaginar que, diante dessa ameaça, diante desse corpo que poderia a qualquer momento traí-lo, que Pessoa decidisse não viver, reduzir sua vida à vida da inteligência (sua parte masculina), e assim escapar à desgraçada possibilidade de tornar-se um homossexual? Não seria essa divisão interior -um homem e uma mulher na mesma pessoa- o início de sua despersonalização, da divisão do eu e ao mesmo tempo da invenção de outras personalidades, em lugar da sua própria, que lhe era, por pervertida, inaceitável? Por outro lado, a necessidade de ocultar esse impulso perverso não seria a primeira simulação que o levaria a tantas outras simulações?
Podemos responder sim ou não a essas hipóteses. Mas mesmo que respondamos sim, não esgotaríamos com isso o mistério da obra poética de Fernando Pessoa nem o enigma de sua personalidade, que dessa obra não se separa, porque, qualquer que seja a causa que determina o nascimento de seus poemas e a criação do seus heterônimos, a significação poética e o valor literário de sua obra pairam acima das explicações.
Não vamos, portanto, indagar agora pela origem de seus heterônimos, mas tentar compreender o que são eles. Num texto conhecido como ``Apresentação dos Heterônimos'' e que foi escrito como prefácio a uma projetada edição de suas obras, em 1930, possivelmente, Pessoa afirma: "O autor humano destes livros não conhece em si próprio personalidade nenhuma. Quando acaso sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê que é um ente diferente do que ele é, embora parecido" (...) "Afirmar que esses homens todos diferentes, todos bem definidos, que lhe passaram pela alma incorporadamente, não existem -não pode fazê-lo o autor destes livros; porque não sabe o que é existir, nem qual, Hamlet ou Shakespeare, é que é mais real, ou real na verdade."

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