quarta-feira, outubro 12, 2011

MINHA CASA

A infância é universal
Salto dentro da tarde,
Como quem cai na correnteza do rio temporal.
Vou sem volta.
Pássaros batem em retirada de mim.

É incomum que levantem vôo
Quando a noite se alonga.
A noite é casa de andarilhos,
Poleiro de avoantes.
Quintal sem cercas é o claro dia.

Aves de arribação vêem o movimento das estações,
Os sinais de velhice no dorso de minhas mãos.
Eu inverno.

Minha linhagem é assim: começa a entardecer pelas mãos.
Esse assalto do tempo é lenta agonia,
Mas assombra.
Faz levantar andorinhas, papa-capins e os cantadores.

Se pudesse escolheria não morrer comum.
Queria a nona sinfonia abrindo as portas do mistério.
Mas agora o que quero é minha casa
Tal e qual era:
As janelas maciças, feridas de sol
Naquela tarde suburbana
Tão longe.

Quero minha casa de volta.
A noite miúda dentro do quarto,
O cortinado armado,
Meus irmãos nos beliches
E a madrugada lá na bica d’água vazando,
Vazando,
Vazando.

Quero minha casa onde era:
Na descida do morrinho,
Bem em frente a vivenda de dona Tinola.
Antiga, com a moenda triturando o milho e a tarde,
A galinha de pinto no terreiro
E o lençol transparente do dia desfraldado
No varal.
Atrás da figueira,
O canto do canário belga
- Uma flecha de porcelana atirada -.

Quero minha casa e minha mãe,
Mãe medieval, tronco e braços,
Músculos na bacia, avental, fogão de lenha
E flor quando havia tempo.

Minha mãe na igreja, nave mística,
Ancorada entre a praça e a linha do trem.
Os santos barrocos de sorriso que não combinava
Com a manhã nos vitrais.
O pecado grudado no meu pescoço
E eu com pavor da fúria de Deus.

Quero minha mãe, viuva sublimada, senhora soberana.

Quero minha casa
As mangueiras, laranjeiras, goiabeiras,
Esteios do reino de minha memória.
O céu bem acima das copas
E as pipas revoltas, suicidas, desgarradas
Vento à fora.

Não quero nada além das fronteiras
Do campo de meu afeto –
Mares, montanhas brancas, falésias,
Geografia do meu desconhecimento
Terras que só ouvia falar,
Territórios do sonho.

Quero só minha casa na avenida governador Roberto Silveira de volta,
Minha infância, seus domínios e seus cheiros,
A broa de milho, os eucaliptos do seu Nico Figueira
Vergados nos temporais,
Maria Tabajara e sua alegria atávica,
O olhar crepuscular daquela menina
Que perdeu-se nas esquinas do futuro.

Preciso de minha casa e sua geografia mítica,
Porto onde o mundo começa e termina.

FernandoLeiteFernandes

8 comentários:

  1. 12 de outubro. Melhor não há.

    BRAVO!

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  2. geraldo Lopes Raphael12 de outubro de 2011 às 20:18

    Ter sido criança vivendo em São Fidélis, ah! que inveja. "Que o passado abra o presente pro futuro" (taiguara) Parabéns Fernando. O texto é comovente, lindo.

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  3. Fernando.
    Eu também quero isso tudo de novo mas, mais que tudo, aquela mãe tão especial que tivemos e o também especial ocupante daquela cama com cortinado azul.
    As paisagens, a geografia, as pessoas e tudo o mais estão muito vivos na nossa memória. Foi um tempo mágico e continua sendo para todos nós.
    Obrigada pelo presente. Fiquei emocionada e comovida com sua poesia.
    Beijos. Muitos.
    Maria Lúcia

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  4. Crescemos bons em mesmo lugar
    Voltado a infância
    Recorda de olhar por sobre o muro
    Pros lados da loja do seu Edgar
    Caminhamos, é humana ânsia
    Vizinho na infância, vizinhos no futuro

    A saudade é justa e plena
    Mesmo pousados em terra feita estéril
    És poeta fecundo,fértil.
    Nesta planície,feita rósea e pequena
    Não por golpe de nosso entalhe
    Sim por alheio detalhe
    Lavorando a gente segue

    *Mas se tudo a imaginação pode
    Logo eles a gente (Rima livre)

    Zé Armando

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  5. AS infâncias eram bem melhores que as de agora!
    Muito bonito!

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  6. Minha mente demorou a voltar à realidade. Voltar da viagem na qual embarcou desde as primeiras linhas deste maravilhoso poema.Muito, muito lindo!

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