terça-feira, setembro 20, 2011

CARTAS DE AMOR

Monólogo que estreia na quinta-feira revela correspondência entre Drummond e sua filha

(Luiz Fernando Viana)

RIO - Ela o chamava de "Querido Cacá", "Papai querido", "Meu papaizinho querido", "Papai re-querido", "Pai constante e mais do que querido", "Poeta amado" e outros nomes. Ele a tratava como "Julietinha", "Bizuquinha", "Filharoquinha", "Filhinha muito pensada", "Julica prezadíssima", "Amiga do papai" etc.

O carinho que encimava as cartas trocadas entre Carlos Drummond de Andrade e sua filha única, Maria Julieta, transborda de toda a longa correspondência mantida pelos dois ao longo de seis décadas. Esse afeto é o fio condutor do monólogo "Cartas de Maria Julieta e Carlos Drummond de Andrade", que a atriz Sura Berditchevsky estreia na quinta-feira na Sala Multiuso do Espaço Sesc, em Copacabana.


As cartas, que vêm a público pela primeira vez agora e poderão ser editadas em livro em 2012, estavam em pastas no apartamento onde o poeta vivia, em Copacabana, e no qual mora Pedro, um de seus três netos. Por "pudor de ficar triste", ele diz que poucas vezes mexeu nelas. Ao abri-las, no início do ano passado, começou a achar que aqueles textos poderiam resultar num espetáculo.


- Parecia não tocar só a minha emoção, mas ser capaz de fazer sentido a outras pessoas - diz Pedro, para quem "o palco vai funcionar como máquina do tempo". - São cartas da minha vida. Morávamos em Buenos Aires e ficávamos aguardando os envelopes da vovó (Dolores) e do Carlos (como ele se refere ao avô). Eu era o encarregado de abrir os rolos de revistas e jornais. Associava aquele cheiro a férias, que passávamos no Brasil.


Poeta queria outra imagem de pai

Ao encontrar-se por acaso com Sura e ouvir que a atriz desejava voltar a atuar - desde 2002 ela vinha priorizando a direção de espetáculos infantis -, Pedro fez a sugestão. Ideia aceita, os dois passaram a vasculhar as pastas e ler, literalmente, com lupa uma correspondência que começou em 1933, quando Maria Julieta tinha 5 anos. Nas férias em Minas passadas com as famílias de pai e mãe, ela enviava para o Rio notícias ("Eu tenho brincado muito"), um retrato de Drummond que desenhou e queixas ("Por que você não escreve carta?").


- As cartas permitem acompanhar a história da vida dela. E ver como Drummond era um pai amoroso, que promovia o crescimento da filha - destaca Sura, que ganhou versos do poeta ao lançar seu terceiro livro infantil, em 1986: "Sura pinta a saracura/ com seu jeito de contar/ (...) Há em Sura uma doçura/ que faz a gente sonhar".


A atriz decidiu incluir versos dos poemas "A mesa" e "Viagem na família" - em gravações feitas pelo próprio poeta - para ressaltar como tinha sido pouco afetuosa a relação de Drummond com seu pai, morto em 1931.
- Ele passou a vida procurando esse pai. E construiu outra relação com a filha - interpreta Sura.


Ela e Pedro asseguram que não há nas cartas nada que justifique a imagem de incestuoso que o relacionamento ganhou do advogado Octavio Mello Alvarenga, último namorado de Maria Julieta. E, embora a filha soubesse da amante do pai, também não há menção a Lygia Fernandes.


Tendo vivido na Argentina por 30 anos, Maria Julieta transmite informações sobre o país ao pai e recebe outras do Brasil - ela foi divulgadora fundamental da cultura brasileira entre os argentinos. Mas há poucos comentários sobre política, embora os países tenham vivido sob ditaduras nos anos 1970.


- Eu poderia fazer uns três espetáculos a partir das cartas. Mas preferi o recorte da intimidade, das relações familiares, que é o mais forte. O afeto e a cumplicidade cultural são muito grandes - aponta Sura, que resolveu, com o codiretor Fernando Philbert, projetar imagens das cartas no cenário.


Aos 17 anos, já tendo lido muito por estímulo do pai, Maria Julieta lançou seu primeiro livro, "A busca". Em 1949 vem o baque para o poeta: sua "Maricota", já adulta, decide se casar com o argentino Manuel Graña Etcheverry, o Manolo, e viver em Buenos Aires. Trechos da carta, escrita ao futuro genro, em que o pai aceita a união dos dois estão na peça.


- Com o casamento, o tom muda, e o intercâmbio intelectual fica mais intenso - diz Pedro.

Eles trocam informações sobre livros e filmes. Ela relata como viu em Paris o velório de André Gide. Reverente, exalta uma crônica do pai: "Dá uma grande inveja!". Abusada, faz ressalvas a um poema. E, em carta respondendo às angústias de uma filha com o futuro literário nebuloso, Drummond orienta: "Escreva, minha filha, escreva. Quando estiver entediada, nostálgica, desocupada, neutra, escreva. Escreva mesmo bobagens, palavras soltas, experimente fazer versos, artigos, pensamentos soltos (...). Não tenha a preocupação de fazer obras-primas, que de há muito eu já perdi, se (é) que algum dia a tive."


O espetáculo de Sura começa e termina com trechos de "Topázio", o romance que o câncer não deixou Maria Julieta acabar. Ela morreu em 5 de agosto de 1987. Doze dias depois, sem suportar a perda, o coração do pai parou.

Um comentário:

  1. Os sapatos de Orfeu: biografia de Carlos Drummond de Andrade(José Maria Cançado)


    17 de agosto de 1987...
    “Tristeza não tem fim, felicidade sim”

    Depois da morte da filha, Drummond perdeu o sentido da existência. No dia 13 de agosto, Drummond reclamou de algumas dores no peito. A médica que o atendia, Elizabeth Viana de Freitas, o submeteu a um eletrocardiograma. Drummond pediu a ela um infarto fulminante. Era quase isso que ela via nas fitas do eletro.
    Na sexta, as dores voltaram. Pioraram à noite. Na madrugada de sábado Drummond pediu aos netos que telefonassem para o Pro-Cardíaco. “Quero me internar”. Na hora de sair de casa disse: “Estou liquidado”. A sua médica o viu lutando no CTI, querendo arrancar tubos, agulhas, soros. Estava lúcido.
    À noite, Lygia Fernandes ligou para Pedro Augusto no hospital. Queria estar com Drummond. Pedro Augusto levou a avô Dolores para casa, para que ela pudesse jantar. Lygia Fernandes veio para o hospital. Ele já estava em sedação profunda.
    Nem era mais ele. Tinha voltado a ser “um homem pequenino à beira de um rio” — as mesmas forças que fazem com que haja um agigantamento quase mitológico da vida, e fazem supor ser o homem o maior dos prodígios, também fazem, como as figuras e armações de papel postas na água, com que haja, num determinado momento, uma diminuição, um desfazer-se a vida, a sua redução a uma escala também mitológica do pequeno. Os que não são anões também morrem pequenos.
    Essa vida, na qual nem tudo era exemplar, e que tinha como que o “aparelho” avariado — na acepção que os bailarinos e os cantores que dão à expressão aparelho, no sentido de corpo e músculos e tendões, e de cordas vocais —, não tinha alternativa senão pegar os seus terrores e sair com eles, até que os ensinasse a cantar. Ensinou. Sem “fugir ao mínimo objeto ou recusar-se ao grande”, cantou quase tudo do século XX e do Brasil, dando aos seus objetos uma qualidade e uma cifra que fizeram com que eles se incorporassem ao nosso “fatal lado esquerdo”.
    Mas já não era mais ele. A mesma fonte secreta que pressionam para que houvesse a sua vida, a sua obra, o seu tumulto, a sua humanidade, desandam há pouco, e a própria magnífica circunstância que o tinha empurrado para a sua poesia, já não estava com ele. Ele tinha voltado a ser um pequeno homem encolhido à beira do tempo.
    Sua morte, por insuficiência respiratória, provocada por um infarto, chegou, segunda-feira, às 20h45min.

    Para saber sobre a vida de uma celebridade, nada como as confissões em sua correspondência.

    CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1987)
    O caso extraconjugal com uma bibliotecária 25 anos mais jovem tornou-se público sete anos depois de sua morte, com a publicação de conversas gravadas pela amante.

    DRUMMOND. Seus poemas sempre derreteram o coração de muitos enamorados. Imaginava-se que sua musa inspiradora seria sua mulher, Dolores Morais, com quem se casara em 1925. Em 1994, o jornalista Geneton Moraes Neto publicou a transcrição de fitas secretas gravadas pela amante Lygia Fernandes, 25 anos mais nova que Drummond. Lygia, como se percebeu depois, foi a musa inspiradora de muitos de seus versos.


    Moisés Pereira da Silva

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